Alice, Marco Martins
Ficha Técnica:
Título: Alice
Realização e argumento: Marco Martins
Elenco: Nuno Lopes, Beatriz Batarda, Miguel Guilherme, Ana Bustorf, Luara Soveral, Gonçalo Waddington, Carla Caciel, Clara Andermatt, Ivo Canelas, Teresa Faria, Carlos Santos
Produtor: Paulo Branco
Música: Bernardo Sassetti
Género: Drama
Portugal, 2005, 102′
Mas os poços da fantasia
acabam sempre por secar
E o contador de histórias, cansado
tentou escapar como podia!
E o resto amanhã – já é amanhã!
Lewis Carrol
In Alice’s adventures Worderland
Alice é a ausência-presença do filme de Marco Martins. É, simultaneamente, o seu móbil e a sua finalidade.
Seguir os trilhos do tempo, daquele fatídico dia – o do desaparecimento de Alice – parece fazer regredi-lo, suspendê-lo. Só a pintura mural do frenético coelho da história de Lewis Carrol, com o seu peculiar relógio, conseguiria detê-lo.
Mas o tempo de Mário (Nuno Lopes), o pai de Alice e de Luísa (Beatriz Batarda), a mãe, não é o mesmo, nem sequer é similar ao tempo dos outros.
O de Mário é tempo lento, tempo-esperançoso, que surge da necessidade incessante em reaver o tesouro sumido algures por entre as ruas de Lisboa.
O tempo da procura insistente é lento porque a minúcia com que, de forma ritualizada, Mário repete os seus movimentos, dia após dia, o exige. A repetição reaviva a experiência passada, mantém incólume a memória. Persistência da Memória. Sonho daliniano ou obsessão de Mário?
O tempo de Luísa parece vazio de esperança. É tempo-desesperança. Tempo que corrói, que enfraquece o desejo. Decompõe o sonho.
O tempo dos outros move-se de outra forma, é indiferente. Cru. Distanciado da dor de Mário e de Luísa, vivifica nas filas intermináveis na estação, no aeroporto, nas estradas. É tempo-anónimo da multidão anestesiada por uma vida automatizada.
As melhores imagens do filme são aquelas que materializam a relação de oposição entre estas referências temporais: Mário circulando no meio do trânsito, em sentido oposto aos carros, aos outros, sufocado pela carência da filha e pelo ritmo embrutecido da existência dos outros. Luísa, dilacerada pela dor, ora gemendo, ora bradando ante a sua impotência e a dos outros, nomeadamente da polícia em solucionar o caso. E os outros? Estranhos que circulam na periferia dos dramas.
Um protagonista coisificado pelos outros. Um homem sem rosto.
Uma mãe sofredora. Pietá incompleta. Uma mulher sem filho(a).
A escalada do estado agonizante de Mário, ao longo do filme, torna inteligível que um dia é muito tempo. Parece encurralar anos. O tempo é, afinal, célere. A teia de câmaras, espalhadas por sítios fulcrais da cidade – caminhos outrora percorridos pela pequena Alice -, registá-la-ão? Serão suficientes para detectar a sua peugada?
E os alertas, panfletos reproduzidos em massa, derrubarão o torpor, despertarão os outros do seu egoísmo e individualismo?
As câmaras enfileiradas, como tanques, com que Mário trava a sua luta, é indubitavelmente uma imagem a reter. Tal como a cena, da vitrina povoada de televisões, na qual Mário passa de predador de imagens a sua presa, condenado ao eterno desalento.
À medida que o tempo-desesperança vai capturando Mário, sentimos a sublime música de Bernardo Sasseti. Só ela captará o inefável. Há uma solidariedade entre os sons e as imagens. Uma empatia inexplicável com o desespero da personagem. Um conluio entre duas intensidades distintas. O ritmo é perfeito, lento. Como lentos são os dias. Como lenta é a procura. Como lento é o desgosto que persiste em não o abandonar.
O fardo de Mário é entrecortado pelas cenas em que contracena com Miguel Guilherme. Um desempenho notável deste último, tais como os de Nuno Lopes e de Beatriz Batarda. Não é acidental que os excertos sejam da peça “On an average day” do dramaturgo John Kolvenbach. O enigmático desaparecimento do Pai, o reencontro dos filhos (Jack e Bobby), após quinze anos sem se verem e o jorrar de emoções constituem a trama da peça. “Um dia igual aos outros” é a peça, mas também a divisa da existência real de Mário.
Percebe-se o fascínio de Marco Martins pelo lado dionisíaco do ser humano, pelas situações-limite onde os afectos são pura desmesura.
O desfecho?
Dilemático. Como escolher entre a fantasia construída e a realidade perdida?
Elsa Cerqueira