Juventude em marcha, Pedro Costa
Realização: Pedro Costa
Elenco: Ventura (Ventura), Vanda Duarte, Beatriz Duarte, Gustavo Sumpta, Cila Cardoso, Isabel Cardoso (Clotilde), Alberto ‘Lento’ Barros (Lento), António Semedo, Paulo Nunes, José Maria Pina, André Semedo, Silva ‘Nana’ Alexandre, Paula Barrulas
Produtor: Francisco Villa-Lobos
Género: Drama
Portugal, 2006, 155’
Dois bairros: uma memória errante
Juventude em marcha é um filme sobre os outros que poderíamos ter sido ou sobre como a humanidade sobrevive nos outros que também somos nós. O argumento fílmico alicerça-se no realojamento dos habitantes do bairro das Fontainhas, quase todo demolido, no novo bairro de habitação social de Casal da Boba. Quando Pedro Costa filma restam poucos sobreviventes no bairro das Fontainhas. Todavia, a mudança a que se assiste não é somente geográfica, é afectiva. É que a par de um enraizamento espacial, há um enraizamento emotivo, repleto de memórias, que alberga a identidade de cada ser humano. A sombra que vagueia e nos conduz neste trajecto, ao longo de duas horas e meia, não é simulacro platónico, é Ventura: o ancião das gentes das Fontainhas. Uma espécie de memória errante que deambula entre o antigo e o novo bairros. Um ex-operário da construção civil que em 1972 imigra para Portugal à procura de uma realidade sonhada, mas que persiste em ser irrealizável. Homem de grande estatura, de escassos cabelos (brancos) e de olhos que transmitem uma quietude perturbadora e desconcertante, dado que nunca clamam pela piedade do espectador, tendo em conta as precárias condições da sua existência, Ventura é o protagonista que oscila entre um universo real e um universo onírico. Pedro Costa filma Ventura, e as pessoas que habitavam ou habitam o bairro das Fontainhas, com um olhar simultaneamente próximo e distanciado. A proximidade advém do facto de durante quase dois anos ter vivido na Rua das Fontainhas – quando filmou No quarto de Vanda -, de ter tentado compreender o “modus vivendi” destas pessoas e de deixar as personagens fazerem de si próprias no filme. De facto, com excepção de Gustavo Sumpta, todos são não-actores. O distanciamento manifesta-se na sua preocupação-mor: como captar, sem trair a essência – ou parte dela, dado que como afirma «a vida não cabe num filme»[1] –, de Ventura e dos outros que o rodeiam ou que ele rodeia? Através do ritmo, das pausas e silêncios, dos planos com que captou pessoas, objectos, casas, da cor ou da sua ausência.
Vislumbra-se uma espécie de distanciamento respeitoso, consciente que há uma impossibilidade espácio-temporal e ontológica que não lhe permite colocar-se no lugar daqueles que filma. O realizador rejeita esta relação transferencial porque sabe que as memórias, repletas de experiências dolorosas, e de outras vivências, são inalienáveis, o reduto inviolável da autenticidade humana. O que resta do bairro das Fontainhas? Que elementos são expostos pelo realizador?
Somos levados a um espaço no qual as ruas não são ruas, são becos; as casas não são casas, são casebres; as janelas não são janelas, são buracos que, amiúde, se pregam com tábuas de madeira ou gradeamentos em ferro que lembram um cárcere. Os espaços são exíguos e as paredes, quer interiores, quer exteriores, sujas, esburacadas, despidas de ornamentos, são reveladoras de uma ausência-presença: ausência de condições dignas de existência; presença de uma história de sobreviventes. Através de camas que quase se amontoam, de uma mesa e de um candeeiro a gás, Pedro Costa representa a pobreza enquanto manifestação minimalista da vida. Nesta ambiência, a luz cede lugar ao sombrio. A negritude de Ventura é um prolongamento da negritude do espaço.
O filme parece ser a preto e branco. Raros são os momentos em que a cor ou cores irrompem e, quando tal acontece, Pedro Costa utiliza o intenso contraste: o cadeirão vermelho à porta do casebre de Bete, o Retrato de Hèléne Fourment de Rubens e o Retrato de homem, de Van Dyck, entre os quais Ventura aparece como personagem de outra época e o sofá róseo, no qual Ventura se senta, no interior da Gulbenkian.
Ventura não é um homem qualquer. Pedro Costa refere-se-lhe como «aquele homem grande»[2] . E a sua peculiaridade reside não só, mas também, no modo como aparece vestido: fato preto, camisa branca. Há algo de altivo e inquietante nesta aparição. Como se a sua figura estivesse simultaneamente dentro e fora do seu ambiente, do seu “quadro”. E que dizer do novo bairro de habitação social? Pedro Costa recorre, mais uma vez, ao contraste cromático: branco, demasiado branco, de uma luminosidade que fere a visão do espectador. Esta brancura, quer das paredes interiores, quer das paredes exteriores dos prédios é sinónimo de carência. Carência dos afectos e de uma biografia que estas casas, estes prédios, não possuem. Por isso, Bete, uma sobrevivente do bairro das Fontainhas, dirá a Ventura: «Quando nos derem paredes brancas, pararemos de ver as coisas. Então, tudo terá acabado.» Convém relembrar que, se na nossa cultura o branco é sinónimo de luminosidade e paz, para os japoneses, por exemplo, é a cor que simboliza a tristeza, o azar e a morte. Pedro Costa, com a sua mestria, inverte a topografia dos afectos: naquele bairro degradado havia “anima”, um pulsar dinâmico – moldado pelos gritos das crianças, pelos ruídos que invadem os becos, pelos animais que vagabundeiam- que aproximava as suas gentes; este, o novo bairro social, de cimento e betão, é a anulação dessas histórias vividas, descritas e reinventadas no filme. O realizador filma estes prédios, dando-nos a impressão de que estamos perante uma nova e outra prisão. Por exemplo, quando capta o espaço exterior (recorrendo ao enquadramento contrapicado) com Ventura sentado, é como se este homem estivesse a ser asfixiado por toneladas de betão. Aliás, quase todos os planos do filme são de «câmara baixa»[3] .
Daí a resistência de Ventura em mudar-se. Tão branco, tão novo, tão perfeito, como pretende André Semedo, que até «tem aranhas», ironizará Ventura! Daí o regresso ao velho – mas seu – bairro das Fontainhas. As visitas à sua “prole” são, apenas, um pretexto, que servem o retorno à genealogia dos afectos. Mas esta demanda de Ventura pelos afectos, pelo espaço e tempo sonhados, tem mais de três décadas, altura em que imigrou para Portugal. Não é por acaso que naquele casebre que partilha com Lento existe um gira-discos com o qual Ventura entra em comunhão com a sua cultura, com o espaço e o tempo de outrora, aquele em que viveu em Cabo Verde.
A economia ou supressão de objectos presente no filme exprime por um lado, a privação; mas, por outro, é uma opção do realizador que realça uns elementos em detrimento de outros. O gira-discos, o cadeirão vermelho, o fato de Ventura, o globo do Império na sala de Vanda, são alguns elementos cénicos que Pedro Costa utiliza para nos reenviar para uma outra realidade. Mas há outros, imagens que parecem repetidas: o mesmo Ventura impávido e de pé, à entrada da(s) porta(s),fora e dentro da casa ou das casas, como se não se não adivinhássemos se está entrar ou a sair; os planos alternados dos dois bairros, nos quais Ventura surge como verdadeira aparição. No filme, não há uma realidade, mas várias que conflituam entre si. «A gordura psicológica»[4] das personagens, usando uma expressão do realizador, é coextensiva do tempo que se nega a si próprio: de um tempo lento, muito lento que ajuda a captar a intensidade e o ensimesmamento de Ventura. É como se o tempo psicológico (semi-real, semi-onírico) se sobrepusesse ao (real) tempo cronológico. Mas se o tempo é outro, igualmente as pausas, os silêncios, ajudam a criar uma certa ambiência de surrealidade com a qual o filme se nutre. Assim, o processo narrativo sustenta-se na elipse, através da qual o realizador incita o espectador no sentido de o levar a preencher as ambiguidades, os espaços vazios, as falas ausentes, os silêncios copresentes, deixando-lhe uma amplidão de hermenêuticas possíveis. Um dos elementos mais intrigantes e marcantes, que perpetua essa atmosfera ou ambiência aludida, é a Carta, a carta que Lento pede a Ventura que escreva. Mas não é uma carta qualquer: é uma carta de Amor a Arcangela, sua esposa, que está em Cabo Verde e que fará anos no dia quatro de dezembro. A carta descreve, também, as agruras de quotidiano. A carta irrompe no filme sob a forma fragmentária, quer dizer, vai sendo paulatinamente criada. Ao longo do filme são, pelo menos, sete as vezes em que é dita e redita, construída e reconstruída. Nestas cenas, Ventura não é mais o ex-pedreiro, é o xamane que evoca o passado. Através dela Ventura evoca a mulher amada, real (Clotilde?) ou sonhada. Não se sabe. Através dela, o passado é presentificado porque afectivamente valorizado e o presente anulado. E é no contraste entre estas duas temporalidades (realidades) que está a génese, segundo Joaquim de Carvalho[5] da saudade[6] . Poder-se-á ser saudoso do que não se viveu? Do que se sonhou? Trata-se de uma carta reinventada. Uma carta cuja inspiração é o poeta francês, surrealista, Robert Desnos[7] . Desnos integrou o movimento da Resistência francesa e foi capturado e aprisionado em 1944, pelos nazis, e enviado para os campos de concentração de Auschwitz, Floha, e depois para o de Terezin, onde acabou por falecer um ano depois. Durante o seu encarceramento escreveu a Carta que Ventura reescreve. Este dado capital permite acrescentar algumas ideias a esta pequena reflexão: primeiro, a intensidade dramática que subjaz ao tempo e ao espaço de onde emerge; segundo, a homenagem que Pedro Costa presta, por intermédio de Ventura, a Robert Desnos e, finalmente, como só a poesia pode ter a pretensão de exprimir a profundidade do Amor, do Sofrimento, ou seja, a autenticidade da Vida.Eis as duas cartas:
Carta de Robert Desnos a Youki:
«(…) Gostava de te oferecer 100.000 cigarros louros, doze vestidos de grandes costureiros, o apartamento da Rua de Seine, um automóvel, a casinha da mata de Campiègne, a de Belle-Isle e um raminho de flores de cinco tostões. Na minha ausência, compra à mesma as flores, que eu tas pagarei. O resto, prometo-o para mais tarde. Mas, acima de tudo, bebe uma garrafa de bom vinho e pensa em mim.»
Carta de Ventura:
«Nha cretcheu, meu amor, O nosso encontro vai tornar a nossa vida mais bonita por mais trinta anos. Pela minha parte, volto mais novo e cheio de força. Eu gostava de te oferecer 100.000 cigarros, uma dúzia de vestidos daqueles mais modernos, um automóvel, uma casinha de lava que tu tanto querias, um ramalhete de flores de quatro tostões. Mas antes de todas as coisas bebe uma garrafa de vinho do bom, e pensa em mim. Aqui o trabalho nunca pára. Agora somos mais de cem. Anteontem, no meu aniversário foi altura de um longo pensamento para ti. A carta que te levaram chegou bem? Não tive resposta tua. Fico à espera. Todos os dias, todos os minutos, aprendo umas palavras novas, bonitas, só para nós dois. Mesmo assim à nossa medida, como um pijama de seda fina. Não queres? Só te posso chegar uma carta por mês. Ainda sempre nada da tua mão. Fica para a próxima. Às vezes tenho medo de construir essas paredes. Eu com a picareta e o cimento. E tu, com o teu silêncio. Uma vala tão funda que te empurra para um longo esquecimento. Até dói cá ver estas coisas mas que não queria ver. O teu cabelo tão lindo cai-me das mãos como erva seca. Às vezes perco as forças e julgo que vou esquecer-me.»
Um filme-desvelamento
Na retórica do Juventude em Marcha, Pedro Costa nunca utilizou o “argumentum ad misericordiam”, nem mesmo quando as condições miserabilistas das existências de Ventura, de Clotilde, de Lento, de Paulo, da sua filha Vanda – uma das “felizes” realojadas – são desveladas. Sim, o filme de Pedro Costa é um filme-desvelamento. Desvelamento ante as circunstâncias e constrangimentos da vida. Desvelamento das memórias afectivas, muitas vezes dolorosas, poucas vezes prazenteiras – de pessoas, de lugares, de situações, de objectos – com que se forja a unicidade de cada ser humano. Desvelamento do sonho perdido ou extraviado. Em nenhuma cena Ventura grita. Em nenhuma cena parece revoltar-se. Será porque a revolta é silenciosa? Ou porque o diálogo mais profundo é sempre um solilóquio interior, indizível? Estas questões trazem-me à memória a sabedoria de Cioran[8]. Sim, Pedro Costa lembra-me Cioran e Cioran lembra-me Pedro Costa. Cioran é um filósofo orgânico[9], isto é, da filosofia ou pensamento que brota da carne, dos ossos, do sofrimento; Pedro Costa, um realizador orgânico. Para Cioran há uma fisiologia do pensar, um sentir pré cognitivo, que antecipa o afectivo como critério da realidade: «Tudo o que escrevi foi ditado pelos meus estados, pelas minhas crises de toda a ordem. Não parto de uma ideia, a ideia vem depois.»[10]. Pedro Costa afirmará: «Nunca escrevo um guião, não tenho ideias de cinema nem tenho imaginação. (…) E quanto menos penso, melhor. Muito melhor será o filme.»[11] Um, é filósofo de rua; o outro, realizador de rua. Ambos se vinculam, inexoravelmente, à existência vivida/sentida.
Pedro Costa compreendeu que o mutismo de Ventura pertence à essência de todo o homem sofredor. Daquele que enfrenta com heroicidade, tal como Sísifo, a tragicidade da sua existência, a sua desVentura. Juventude em Marcha é um filme, simultaneamente, cruel e poético. Cruel, no sentido em que desnuda sem pudor o grau zero da existência (existirá?) e em que retrata o fragmento de um país, Portugal, longe da “idade do ouro”, secularmente narrada. E os bairros espelhados talvez sejam a metáfora de um país-cárcere. De um país que se revelou incapaz de praticar uma política efectiva de integração dos imigrantes. Mas esta crueldade patente no filme é o eco da crueldade imanente às vidas captadas ou filmadas. E poético…
Quando a sombra é tão aconchegante quanto as mãos entrelaçadas de Ventura e de Lento;
Quando se reinventa a poesia e ela brota nos lugares mais inóspitos;
Quando o silêncio é sonoro;
Quando se erige Ventura no ancião dos afectos, no guardião das memórias errantes. Pois tal como ele, também elas estão e estarão sempre em marcha…
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[1] Guimarães, P., Ribeiro, D., Entrevista a Pedro Costa, 29/10/2007.
[2] Duarte, Daniel, et al. O Cinema de Pedro Costa, Brasil, Centro Cultural do Brasil, 2010, pág. 29.
[3] Sobre esta opção, o realizador afirmará: «Eu tive que descobrir como poderia colocar-me à sua altura com a minha câmara. A câmara teve que descer e descer e descer, porque não poderia estar à altura dele. Eu precisava de estar abaixo. Não foi instintiva, mas nas primeiras semanas de filmagem eu adoptei essa altura, esse posicionamento, esse respeito (…).» Idem, ibidem.
[4] Guimarães, P., Ribeiro, D., Entrevista a Pedro Costa, 29/10/2007.
[5] 892-1958.
[6] Cf. Joaquim de Carvalho, A problemática da Saudade (1950), Lisboa Editora, 2004.
[7] 1900-1945.
[8]Emil Cioran (1911-1995). Só duas vivências que Cioran apelida de radicais, no sentido etimológico de rizoma, permitirão ao ser humano aceder ao seu reconhecimento, à sua “re-entrada” em si: o Amor e o Sofrimento.
[9] «Jamais compreenderei como foi possível encarar o corpo como ilusão, como não compreenderei como foi possível conceber o espírito fora do drama da vida, das suas contradições, das suas deficiências. É com toda a evidência não ter consciência da carne, dos nervos e de cada órgão.» Cioran, Sur les cimes du désespoir (1933) In Oeuvres,1995, pp.50-51.
[10] Cioran, Entretien avec Gerd Bergfleth (1987), Entretiens, p.151.
[11] Entrevista a Pedro Costa. PhotoEspaña, 2009, “Pedro Costa – O Cinema é um ofício, é como ser pedreiro”.
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FILMOGRAFIA
JUVENTUDE EM MARCHA, Pedro Costa, Contracosta Produções, 2006.
BIBLIOGRAFIA
BAPTISTA, Tiago. A invenção do Cinema Português. Lisboa: Tinta da China, 2008.
BUTCHER, Pedro. Entrevista a Pedro Costa em Cannes, 2009. Cinética, Revista de Cinema e Crítica. Disponível em http://www.revistacinetica.com.br/entpedrocosta.htm. Consultado em 27 de dezembro de 2012.
CABO, Ricardo (org.) et al. Cem mil Cigarros – Os Filmes de Pedro Costa. Lisboa: Orfeu Negro, 2009.
CARVALHO Joaquim. A Problemática da Saudade (1950). Lisboa: Lisboa Editora, 2004. CIORAN, Emil. Sur les cimes du désespoir (1933) In Oeuvres. Paris: Gallimard, 1995. Entretiens. Paris: Gallimard, 1995.
DUARTE, Daniel, et al. O Cinema de Pedro Costa. Brasil: Centro Cultural do Brasil, 2010.
ENTREVISTA a Pedro Costa. PhotoEspaña 2009 – Pedro Costa – O Cinema é um ofício, é como ser pedreiro. Disponível em http://www.snpcultura.org/vol_o_cinema_e_um_oficio_como_ser_pedreiro.html. Consultado em 20 de Dezembro de 2012.
ZUNÁI. Robert Desnos. Revista de Poesia & Debates. Disponível em http://www.revistazunai.com/traducoes/robert_desnos1.htm. Consultado em 26 de Dezembro de 2012.
Elsa Cerqueira
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Nota Marginal Um: Artigo publicado na Revista Finis Mundi, Lisboa, IAEGCA, Outubro-Dezembro, 2013, n.º 7.
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