Paul, Marcelo Felix
Ficha técnica:
Realização e argumento: Marcelo Felix
Elenco: Alice Medeiros (Tradutora/Legendadora), Rómulo Ferreira (Operário), Crista Alfaiate ( Daiva), Mafalda Lencastre (Kerttu),
Dimitris Mostrous (Liocha)
Música: Sándor Veress
Produção: Isabel Machado Joana Ferreira
Portugal, C.R.I.M., 2016, 71’
Sobre esta obra fílmica registarei algumas pistas, com a certeza de que as aprofundarei quando o tempo o consentir.
Estamos perante um filme dentro de filmes. Uma legendadora ou tradutora (Alice Medeiros) num filme cuja língua é o Estónio e, portanto, a carecer de legendagem. Legendagem sobre legendagem.
A existência ficcionada do operário fabril, interpretado por Rómulo Ferreira, do filme em processo de legendagem parece cruzar-se com a existência real da tradutora. E à medida que o filme avança, o espectador sente que realidade da legendadora parece ser o real ficcionado ou a ficção realizada.
E a narrativa, ou melhor, a sua ausência, porque a narrativa linear, sequenciada, lógica, não existe, adensa o mistério que rodeia esta(s) história(s).
Neste sentido, este filme é inclassificável, “incatalogável”. Aliás, o género é sempre uma camisa-de-forças. Não há documentário e realidades puras, como não existem ficções desancoradas da realidade.
A estranheza é o sentimento que antecipa a inquietação. Mas há dois tipos de inquietação: a inquietação-interrogação, ou seja, o desassossego crítico, um convite à interioridade; e a inquietação-rejeição, quer dizer, a preocupação fossilizada no preconceito. Enquanto a primeira funda a atitude filosófica, a segunda alicerça-se na atitude dogmática, que exclui o diferente. Acredito que esta última será tanto maior quanto a sofreguidão – entenda-se, habituação – do espectador em assimilar “fast film”, quer dizer, em consumir filmes de forma a-crítica.
A cena inaugural de “Paul”, a do beijo, é de uma beleza desconcertante. O contraste cromático (preto e branco) tem um duplo papel: por um lado, transporta o espectador até à genealogia do Cinema; por outro, intensifica o dramatismo subjacente ao estado psicológico das personagens. A ausência de legendagem/tradução é inquietante. E se o beijo for intraduzível?
E da estranheza-inquietação, desemboca-se no deslumbramento porque o filme de Marcelo Felix é um elogio à lentidão – como se o tempo estivesse fora do tempo -, aos pequenos gestos (dos olhares, aos pés que dialogam entre si) e aos pormenores (dos olhos cor de esperança da tradutora à água verdejante, do chapéu que rodopia, do pulsar das folhas ou o som dos cabelos ao vento no paul), como se de pinturas impressionistas se tratassem mescladas por uma narrativa fragmentada ou estilhaçada, envolvida numa ambiência de surrealidade. E na criação desta atmosfera o realizador presenteia-se, ou presenteia-nos, com o jogo da intermitência ou da oscilação entre a ausência-presença e a co-presença. Dos sons. Do som-ruído (das máquinas na fábrica) ao som-sussurro (dos segredos no/do paul). Dos silêncios. Dos sons nos silêncios. Dos signos linguísticos inteligíveis. Das expressões verbais indizíveis. Da luminosidade. Da negritude. Da negritude luminosa.
Eis que me deparo, na noite ou nas trevas, com o rosto do violoncelista. Rosto encantado/iluminado pela música, ou como se lhe refere Schopenhauer, pela mais imaterial de todas as artes.
Intermitências das imagens cinematográficas (verbais, icónicas, cromáticas, sonoras, mas também olfactivas…) que oscilam entre o visível e o invisível corporificando a condição paradoxal do humano. Deambulação entre o operário-vidreiro e o músico, entre o des-sentido e o sentir sentido. Ontologia da intermitência.
Ouve-se no filme dentro do filme “Eu não faço tudo sozinha. Dependemos de tanta coisa. Eu só posso avançar até certo ponto.” Poderá a tradutora de agora ser o operário de outrora? Imagens-movimentos que (os) aproximam os tempos das imagens. Poderá o aprisionado de outrora ser libertado agora?
É a floresta que se prolonga no paul ou o paul que se espraia na floresta e onde quer a legendadora, quer o operário se “cruzam” e, simultaneamente, se libertam, numa espécie de corrida ritmada ou musicada pela paixão?
Com este filme Marcelo Felix subverteu a máxima de Wittgenstein, segundo a qual “Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo” porque, doravante, não são as palavras que potenciam as coisas, os seres, mas as imagens. Imagens que estimulam o som mesmo quando ele foi suprimido. Sim, porque no paul ouvi o belíssimo solo “mudo” de violoncelo. Talvez o silêncio seja o “húmus” da música. E, por momentos, sinto a partitura 4’33‟ de John Cage.
Desde a “Arca do Éden” que Marcelo Felix é o realizador-explorador das imagens inaugurais ou primordiais. “Imagens e sons em estado de espera e de reserva”[1], como dizia Robert Bresson. À espera de serem criados e (re)descobertos. Porque criar é estreitar. “É estreitar entre pessoas e coisas que existem, e tal como existem, novas relações.”[2]
Quando o Cinema se reinventa e, com ele, se redefine a natureza do espectador.
Elsa Cerqueira
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[1] Robert Bresson, Notas Sobre o Cinematógrafo (1975), Porto, Porto Editora, 2000, pág. 63.
[2] Op. Cit., pág. 25