O Livro dos Homens Sem Luz, João Tordo
Editora: D. Quixote
ISBN: 978-972-20-4384-7
Género: Romance
Páginas: 214
Ano da 1.ª edição: 2004
«A memória é a forma mais precária de documentação porque morre quando aquele que relembra morre, é como se a vida fosse o documento de si própria – uma vida que, a cada momento, se esquece de si.»
João Tordo, O livro dos homens sem luz
O título de um livro é uma espécie de primeira impressão, de escolta entreaberta rumo à descoberta das páginas que se percorrerão. No caso d’ O Livro dos Homens sem Luz associei-o, inopinadamente, à escuridão ou penumbra. E tal poderia parecer linear. No entanto, deparei-me com um enredo complexo, pleno de dinamismo e intensidade, no qual o tempo discursivo não obedece ao tempo cronológico, e com uma prosa repleta de recursos estilísticos: há quatro histórias distintas cujas personagens são «documentadas» através da escrita oriunda de uma fusão de personagens-narradores. Enquanto uns descrevem, outros são descritos.
A radicalidade e a tensão das vivências das personagens – David, Daniel, Helena, Joseph, Roy, Burke, Magda, Nina, Philip -, concede-lhes o direito de aparição nos diversos contos, desde os Diários de Londres, a Soterrados, a Insónia até Brigthon. Tal como uma peça de filigrama isenta de ouro, tecida com o mais puro e negro metal.
Sente-se na escrita o estado sofredor do solitário submergido numa escuridão plural. Solidão física derivada da ausência (inicialmente, a de David) ou impossibilidade forçada de contacto com os outros (por exemplo, a de Helena e de Joseph); solidão como condenação (Joseph no hospital psiquiátrico) ou auto-imposição (a de David e a de Philip Mackay). Ansiada ou indesejada, a solidão surge como motor de redescoberta: do interior para o interior (personagem) e, num movimento inverso, do exterior para o interior (do leitor para a personagem).
A solidão é sinónimo de despojamento, como no caso de David – um funcionário «fantasma» – que «Não possuía casa própria ou emprego fixo, amigos ou conhecidos (…), conforto financeiro ou qualquer perspectiva de futuro» e que vive a vida dos outros: primeiro, através da «janela indiscreta» da sua sala, num acto de voyeurismo assaz hitchcockiano; depois, pela ocupação que acaba por exercer, sem a qual o livro de João Tordo jamais haveria saído da escuridão: urde diários das vidas dos outros, como se da sua vida se tratasse. Um vendedor não apenas de passados, como Félix Ventura no romance homónimo de José Eduardo Agualusa, mas um vendedor de existências presentes e futuras.
É muito interessante captar a empatia silenciosa que David experiencia face ao estudante franzino, um dos seus vizinhos e objecto de culto da sua curiosidade desmesurada, mais tarde apresentado enquanto «arrumador de livros». Também ele padece de uma solidão e de insónias incuráveis. E sente-se que «mesmo na miséria existe uma espécie de partilha.»
De certo modo, o solitário renuncia à sua própria vida existencializando-se num misto de «esquecimento físico, separação da carne dos ossos».
E o relato do fechamento ao mundo de Joseph e de Helena, enclausurados num abrigo subterrâneo devido ao bombardeamento ocorrido em setembro de 1940, é violento e pleno de suspense.
No interior da «caverna» assiste-se a uma metamorfose das personagens: Helena, outrora frágil e assustadiça torna-se lúcida e guerreira; Joseph, outrora padeiro orgulhoso da qualidade da manufactura do seu produto, um ser rastejante e imundo. A degradação, física e psicológica, progressiva de Joseph é exemplarmente (d)escrita por João Tordo. Enquanto Helena flui da esperança ao desânimo, do desânimo ao desespero, do desespero à lucidez; Joseph torna-se um violador quer de princípios morais que o destituem de perceber e discriminar o bem do mal; quer físico, dado que viola reiterada e selvaticamente a esposa, Helena. Análogo ao louco de Gogol que não renúncia à vida, mas à razão, alimenta-se de fezes, emite ruídos, chora e esbraceja até ficar ensanguentado. As personagens da história esperam ser resgatadas. E esperam por um Godot que insiste em não aparecer.
O sonho assume um papel fundamental na obra. David sonhava com a realidade: com o que via à janela, com a projecção das vidas que perseguia; Joseph tendia a fazer desparecer a realidade para sonhar com reminiscências passadas. Em ambos o sonho é reconfortante e fugaz. Fuga da miséria ora interior (personagem), ora exterior (segunda Guerra Mundial),o sonho é simultaneamente invasor e invadido: sem pedir licença penetra nas personagens reconfortando-as com a presença do amor e da generosidade desaparecidas; mas, paradoxalmente, é sempre convocado por elas.
E não é por acaso que a amada de David, no primeiro encontro, na biblioteca, lhe pede o Fedro de Platão, obra onde se discute, entre outras problemáticas, a paixão guiada pela «intemperança» e o «amor verdadeiro».
E eis que sou surpreendida com o ressurgir de Joseph em Brigthon, paciente com o caso mais enigmático do hospital, dado que havia perdido a verticalidade e tinha aversão à luz. A tortura a que se assiste, aquando da aplicação do «aparelho de ajuste vertical» pelo Dr. Burke, é dramática. E a fuga de Joseph representará simbolicamente um vislumbre de iluminação: a resistência em prol de uma morte digna, admitindo que existe uma hierarquia ética no processo de nadificação ou supressão de ser.
As sombras que vagueiam na escuridão são as companheiras fantasmagóricas que cada personagem encerra. No caso de Daniel, por exemplo, transformaram-no «num resto de alguém».
E com esta narrativa, ou narrativas, em filigrana João Tordo proporcionou-me o acesso aos mais inquietantes e profundos estados vivenciais da existência humana: a solidão, o medo, o sofrimento, o desespero, a morte, mas também o amor, a esperança e a generosidade extremas. E no cerne de cada personagem capta-se esta luta entre os contrários. É que a Escuridão pode muito bem ser ambivalente.
Elsa Cerqueira
As tuas palavras, PolegarMente.me, aguçaram.me o apetite para saborear esse(s) enredo(s). Será, também, um autor a descobrir. Estou frustrada por não estar presente no encontro com João Tordo, na ESA.
Olá Susana!
Tenho a certeza que ficarás encantada com a leitura desta obra profundamente filosófica. Fiquei muito perplexa por se tratar do seu primeiro romance (2004), o que me levou a pensar que a intensidade das vivências, a maturidade da escrita e a criatividade terão pouco a ver com a idade do escritor.
Estou cheia de curiosidade para ler a “Biografia involuntária dos Amantes”.
Espero que regresses ao meu PolegarMente.me…às vezes.