Ruínas, Manuel Mozos
Ficha técnica:
Argumento e Realização: Manuel Mozos
Género: Documentário
Música: Anakedlunch
Produção: O som e a Fúria
Portugal, 2009, Cores, 60’
Enquanto objecto estético, o filme Ruínas de Manuel Mozos é belíssimo.
A história inicial de Henriqueta e de Etelvina é a de um amor desmesurado que subsiste através do ritual das flores, após as suas mortes. É esta a ligação inquebrável do cineasta com as (suas) ruínas.
É um filme poético-filosófico sobre a desconstrução do humano, das suas acções, sobre a inequívoca realidade da decomposição.
A panóplia de edifícios abandonados pelo animal humano constituem fragmentos de biografias, cujas imagens desfilam na tela entrelaçadas por algumas memórias que resistem à erosão dos tempos cronológico, físico e psicológico.
«Uma pessoa são muitas pessoas dentro de uma só» – escreveu Pedro Paixão.
Analogamente, cada ruína tem muitas ruínas dentro de si. É que os edifícios são contadores de histórias, albergando as suas raízes identitárias. Memórias cimentadas em cada fragmento erguido. Memórias olvidadas em cada lugar que se perdeu.
Todavia, não há vazio quando as memórias resistem, não há vazio quando os esqueletos arquitectónicos subsistem.
Os lugares, os espaços, os objectos, talvez sejam como as pessoas: esquecidos e substituídos pelas gerações vindouras. Espectros de vidas que dinamizaram a história, repletos de histórias, evocadas no filme.
Não é, apenas, o abandono dos edifícios que nos incomoda e revolta. É a mágoa de os sabermos inactivos, desprezados. As ruínas interpelam-nos porque remetem para o despertar de uma inconsciência colectiva, mera antecipação da história universal e do devir humanos.
Se tivermos percebido a relatividade e o aleatório de cada existência (material e imaterial), o filme terá tido o mérito de desconstruir o preconceito que padecemos secularmente: o nosso antropocentrismo primário. Desapossados de ideias, motivados por um materialismo desenfreado, abandonamo-nos … tal como fizemos aos edifícios erguidos por nós.
Por isso, na dialéctica construção-destruição que transcorre todo o filme, não creio que se deva procurar o que talvez nunca tenha existido: um fio condutor. E se o elo que buscamos, como necessidade imperiosa para justificarmos as nossas acções – passadas, presentes, futuras – for inexistente?
Afinal, a insistência em encontrar um sentido, uma teleologia, é uma pretensão humana e uma irrealidade arquitectónica.
E se o des-sentido for mais forte e cada ruína uma história perdida-reencontrada pelo cineasta?
A nossa acção sobre o planeta Terra oscila, tal como os nomes das ruas, entre o desejo de acedermos ao estatuto de «Milionários» e a realidade de sermos corrosivos, como o «Ácido sulfúrico».
Similares a um sanatório que cura, mas não se cura, traçamos irremediavelmente a nossa patologia: desalojadores/ despojadores de edifícios, renunciadores de ideais.
O filme transporta-nos para um universo poético: o da comunhão do mundo natural com a queda anti-natural destes edifícios. Perceptível, por exemplo, nas folhas que se prolongam e parecem insistir em penetrá-los, não como invasores hostis, mas como presenças reconfortantes. Cada imagem, cada silêncio, cada voz, cada som, impõe-se-nos – exigindo do espectador uma atitude de puro respeito -, porque desvelam o que fomos/somos.
E se pensarmos que o envelhecimento é a ruína do corpo humano e que as memórias pouco claras constituem a ruína de uma mente lúcida, saberemos que todos nós somos, inelutavelmente, ruínas em potência.
Belíssima metáfora da essência e natureza humanas.
Manuel Mozos ao erigir as ruínas em protagonistas recuperou-as. Ironicamente, com esta obra cinematográfica, elas sobreviver-nos-ão…
Elsa Cerqueira