Vou para Casa, Manoel de Oliveira
Ficha Técnica:
Argumento e Realização: Manoel de Oliveira
Género: Comédia, Drama
Elenco: Michel Piccoli, Catherine Deneuve, John Malkovich
Argumento: Julia Buisel
Produtor: Paulo Branco
Co-produção Madragoa Filmes (Portugal), Gemini Films (França), 2001, Cores, 90’
O Rei (de) Ionesco é convocado. É com uma representação teatral de cerca de doze minutos que se inaugura o filme. Presentificação de duas representações.O rei, debilitado fisicamente, recusa-se a ouvir as palavras que ditarão o seu fim. Recusa-se a morrer.
Se a finitude é certa, «Por que é que nasci?» – pergunta-se Bérenger.
Esta é a questão filosófica simultaneamente transversal e premonitória dos acontecimentos que se sucederão. Mas à incerteza da vida opõe-se a certeza da morte.
Gilbert é impotente face à morte acidental da esposa, da filha e do genro. Ninguém controla os acontecimentos. Reage. Como filmar e exprimir a dor e o sofrimento?
Com um quarto escurecido. O esqueleto de uma cadeira acomodando-se e espraiando-se por entre os cortinados. Eis a cena onde silenciosamente irrompe o grito, não de Munch, mas de Gilbert. Um grito silencioso, amparado pelas mãos na sua tez inclinada. Alienam-se as palavras porque, como afirmava Cioran, há estados tensionais onde «toda a palavra é uma palavra a mais».
Porém, quando o ser humano idealiza ou renuncia a projectos rompe com a indiferença, constrói-se. Age. É enquanto ser que valora que Gilbert assume ser dono de si próprio e autor do seu porvir. Condição paradoxal de servo e senhor de si próprio.
O protagonista, soberbamente interpretado por Michel Piccoli, recusa-se a fazer uma série televisiva, cuja história se lhe afigura banal, a de um velho decrépito. Dispensa o sexo e a violência gratuitos. Um actor com inequívoco talento, estimado pelo público, não escolhe o lucro imediato, não fomenta ou provoca o salivar pavloviano dos espectadores mais incautos. O público merece-lhe respeito. Contrariamente às audiências – olhares fortuitos condenados ao desamparo –, que são por ele desprezadas.
Sempre o mesmo café, sempre o mesmo lugar, o mesmo jornal, o mesmo gesto, o mesmo espelho e a mesma realidade: a dos carros cujo trajecto – tal como a vida – é incerto. Um olhar ritualizado, cansado, triste.
Haverá fuga?
Acompanhar, à chuva, os dançarinos da tela de Jack Vettriano. Escapatória à sua «solitudine», ao envelhecimento, à decomposição dos ossos, à implosão da(s) memória(s). A pintura é a realidade reinventada. Tal como a representação a sua amada.
Há duas cenas que me impressionaram, quer pela sua originalidade, quer pela sua simplicidade, através das quais Manoel de Oliveira insiste em deslocar o seu olhar, conduzindo o do espectador para os pés. Plano de pormenor aos sapatos. E se os sapatos falassem? E se os sapatos sentissem?
É esta a maravilhosa ilusão que nos invade.
No café, os rostos dos actores intervenientes cedem lugar aos sapatos. E os novos, de Gilbert, gesticulam, revelando-nos com os seus ritmos os seus amores e desamores. No escritório, os velhos reivindicam o direito ao fim de uma existência digna, em perfeita harmonia com o portador que assevera que jamais se venderá a papéis medíocres.
Desejaríamos ser estes sapatos. Ter esta coragem. Desejaríamos ser a roda gigante que se liberta e percorre livremente as ruelas da existência.
A felicidade brota quando os afectos (avô-neto/ Gilbert-Serge) comunicam entre si. Mas também ela é finita, ainda que retida e eternizada pela/na memória.
«Tudo se dissipará…» – ouve-se na peça de Shakeaspeare. Será tudo em vão?
Oportunidade imperdível: a adaptação cinematográfica da obra literária Ulisses de James Joyce. Um pequeno papel. O de Buck Mulligan. Uma grande honra em representá-lo. O prazer renasce.
Cena 1/parte1/take 1: nunca se vêem as personagens representar. Ouvem-se. Observa-se o olhar, com um misto de atenção e preocupação, do realizador John Crawford (John Malkovich). Gilbert comete algumas falhas. Será por impreparação prévia? Algumas palavras de Mulligan recusam-se a germinar.
Dia seguinte. Algo está a acontecer. O texto invoca Deus. Sente-se o palpitar desassossegado do coração de Gilbert. As graças a Deus não detêm a desgraça. Afinal, a falha reside no albergue dos afectos: a memória.
Ser alguém implica ser portador de uma identidade, quer dizer, de características essenciais. Este é um legado genético-cultural incompatível com a perda desse património. A memória é o cofre das vivências. Recriando a célebre frase de Heidegger diria que é a morada do Ser.
«Vou para casa» é a capitulação. A constatação de que contra a ausência da memória nada se pode fazer. Realidade inelutável.
A representação final de Michel Piccoli é, simplesmente, primorosa. Do deslizar do manto até ao chão, remetendo simbolicamente para a noção de renúncia ou perda, ao deambular perdido – o de alguém privado das coordenadas da razão – pelas ruas, ensaiando o texto que ousa não lhe obedecer. As palavras consumidas corroem a sua alma, tal como os ossos que se vão degradando, se apropriam e triunfam sobre o corpo.
O som do portão a bater. A entrada em casa, com a cabeça soerguida. A desatenção, percepção indistinta do neto. Entra. Sobe os degraus lentamente. Pára. Reinicia a marcha.
De alguma forma Bérenger contagiou Gilbert. É, afinal, o rei de Ionesco: frágil e impotente. O absurdo tornou-se realidade.
«Somos feitos da mesma matéria dos sonhos», escreveu Shakespeare. E Gilbert sente-se incapaz de sonhar (representar). O que surge diante de nós não é um homem, mas o seu destroço.
Não será a vida uma tragicomédia?
Elsa Cerqueira