Corrente, Rodrigo Areias
Ficha técnica:
Argumento e Realização: Rodrigo Areias
Elenco: Inês Mariana Moita, Vítor Correia
Música: Sean Riley & The Slowriders
Produção: Rodrigo Areias/ Periferia Filmes
Género: Documentário
Portugal, 2008, 15’45’
Os deuses tinham condenado Sísifo a empurrar sem descanso um rochedo até ao cume de uma montanha, de onde a pedra caía de novo, em consequência do seu peso. Tinham pensado, com alguma razão que não há castigo mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança. Camus, Mito de Sísifo
Quantas correntes poderá abarcar a curta-metragem Corrente?
Há uma primeira corrente, aquela que agrilhoa, que faz do mineiro o trabalhador submetido à rotina desumanizante.
Saídos do coração da terra, os mineiros são simultaneamente devoradores e devorados por ela.
A negritude dos dias confunde-se com a claridade das noites. O tempo parece não avançar. O hábito dá-nos a sensação de uma mesmidade perversa.
As máquinas vociferam, comandam a vida. Ditam o ritmo. Impõem os gestos. Regulam a respiração dos mineiros.
Por isso, o protagonista do filme (Vítor Correia) tem um ar endurecido.
No entanto, há uma diferença entre um hábito imposto e outro desejado. Ao primeiro subjaz o determinismo, feroz antídoto da liberdade. O segundo nasce da força afectivo-criadora do homem.
Há hábitos, obsoletos, que desaparecem. Outros habitam nas profundezas da terra e do homem.
O mineiro, tal como Sísifo, é o trabalhador inútil dos infernos. Inferno terreno. Aquele da mina que mina o homem de outras possibilidades, de outros projectos. De outra vida. Vida miserável que domina ao invés de ser dominada.
A descida da montanha é a descida a uma outra corrente. Há, assim, uma segunda corrente, natural, inteligível na imensidão da água que permite o transbordar da quietude.
O mineiro que despe a miséria e se agarra a outra vida manifesta a sua paixão. Flutua na esperança. Desejo de mudança.
A mala, na qual se guarda o Mal (farda) da vida ritmada pelas máquinas é também salva vida. Prenúncio da viagem ansiada.
Também ela, Inês Moita, se despe para os outros, no mesmo lugar, submetida ao mesmo estado letárgico. Também ela, descontente, deseja a mudança. Despir-se de si. Do que foi.
A realidade desconcertante da existência destes mineiros torna-os os “heróis absurdos” do séc. XXI. Acresce o nosso desalento.
O tempo que medeia entre o ontem e o hoje, (des)ilude-nos: é temporalidade cristalizada. Realidade fossilizada.
Há uma terceira corrente, aquela que se situa nas entranhas do homem. Corrente afectiva que brota da cumplicidade entre os seres, por entre os gestos e a troca de olhares. Afagados pelas águas, os protagonistas dissipam o tormento e o infortúnio que carregam nas suas existências.
Finalmente, a corrente filosófica, aquela que nega que o destino do homem não lhe pertence. A moira é inexistente. Corrente desacorrentada.
Este é o ensinamento de Albert Camus e de Rodrigo Areias.
Elsa Cerqueira