Belleville Rendez-Vous, Sylvain Chomet
Ficha Técnica
Elenco (Vozes): Jean-Claude Donda, Michel Robin, Michèle Caucheteux, Bèatrice Bonifassi, Charles Linton, Lina Boudreault, Monica Viegas, Mari-Lou Gauthier
Música: Benoît Charest
Género: Animação
BEL/CAN/FRA, 2003, Cores, 78’
O universo de Belleville Rendez-vous é uma realidade transfigurada pela mão e imaginação de Chomet, transportando-nos para uma cidade-pesadelo. Nutre-se de ínfimos detalhes que conseguimos identificar como alusões à realidade/sociedade. Comecemos pelas personagens desenhadas de forma deliciosamente caricatural.
Champion é um miúdo pequenino e obeso, que vive com avô, Madame Souza. O nome parece predestiná-lo para algo heróico, a fisionomia condená-lo ao malogro. A fotografia pendurada na parede do seu quarto na qual se pode ler «maman et papa sur un vélo» alimentará a sua paixão. Transforma-se num adulto de cintura quase imperceptível, com pernas musculadas e com um nariz de equídeo.
A avó Souza é uma emigrante portuguesa que tem como incumbência educar Champion. Mulher sensível aos interesses do neto, perseverante e de invulgar inteligência prática, possui uma fisionomia inequivocamente portuguesa: tem buço, cabelo encarrapitado, uma perna mais curta do que outra e usa óculos! De indumentária preta (talvez sinónimo de viuvez), é a protagonista do filme.
O cão, Bruno, tem um corpo desmesuradamente grande relativamente às patinhas e tíbias discretas. Traumatizado, enquanto cria, pela experiência de um comboio incapaz de distinguir a sua cauda dos carris, revoltar-se-á, quer dizer, latirá eternamente a todos os comboios que fareje.
Os guarda-costas dos mafiosos da cidade Belleville possuem uma inteligência quadrada a condizer com a geometria dos corpos.Os “padrinhos”, minúsculos seres – como convém a qualquer tirano -, têm reminiscências da sua congénere italiana. Os protectores e os protegidos fundem-se: assistimos a um corpo tricéfalo que se movimenta. É uma imagem fantástica.
Na cidade tudo sofre de gigantismo: os habitantes com as suas nádegas largas, os edifícios e os barcos. Tudo parece erguer-se sob os esguios alicerces da Tentação, não de Santo António, mas de Santo Hambúrguer.
E o que dizer das Triplettes de Belleville?
A elasticidade dos seus corpos, a contrastar com os dos demais moradores de Belleville, aparenta-se aos bonecos dançantes de plasticina.
É com estas irmãs e com Fred Astaire, Josephine Baker e Django Reinhardt que principia Belleville-filme. Uma abertura sonora, a preto e branco. Evocação dos Anos 30.
Agora, envelhecidas continuam a amar a música e a amarem-se. São impressionantes os ritmos originais e originados pelos três objectos, carinhosamente protegidos, elevados à categoria de instrumentos musicais: um frigorífico, um jornal e um aspirador. Inspiradores sons jazzísticos.
As suas refeições são peculiares: sopa de rãs, rãs cozidas e espetadas de rãs!
Chomet não descura os pormenores: os traços, os contornos, as cores e os volumes das personagens transformam-nas em pequenas preciosidades. Por isso, dispensam as falas como nos antigos filmes mudos. Parece que a qualquer momento poderão saltar da paleta. E porque a música é uma linguagem universal dispensa as legendas. Mesmo quando Madame Souza canta “Uma casa portuguesa”.
O argumento é dinâmico, fluído, coerente e consistente. Uma paixão intergeracional: o ciclismo. Um poder desmesurado: a música. E quatro velhotas cuja cumplicidade é suficiente para resgatar Champion e derrotar a Máfia.
Magnífico!
Elsa Cerqueira