O Senhor dos Sonhos
Em Portugal o reconhecimento do talento e da paixão ou é inexistente ou é tardio. Este é tardio. Todavia, merecido. Uma vida a alimentar o imaginário dos outros reivindica essa atenção, esse carinho. Esta singela homenagem.
Refiro-me ao projeccionista do Cineclube de Amarante, o Sr. Alfredo Guedes. Alguém para quem o tempo se mede em fotogramas: 80.
As películas contam histórias que retratam vidas e/ou ficcionam a realidade. Forjam universos. Reflectem sobre o homem que existe, sobre aquele que nunca existiu e aqueloutro que poderá surgir.
O caso do Sr. Alfredo é singular: confunde-se com o seu homónimo do filme Cinema Paraíso, de Giuseppe Tornatore.
Gosto de pensar que a personagem transpôs a vida ficcionada e encarnou o homem (real) ou que o cineasta fez um retrato biográfico do Sr. Alfredo.
A sua paixão pelo cinema começou em criança. Com seis, sete anos, sempre que ouvia tocar o trompete, corria de cadeirinha às costas para o centro de Amarante: sabia que ia haver cinema! Os seus sonhos eram como o cinema mudo: itinerantes.
O Sr. Alfredo convoca a sua memória e diz-me que viu, entre outros filmes, Furacão, Nossa Senhora de Paris, Pão Nosso e O Corcunda de Notre Dame.
Com doze anos foi trabalhar para a fábrica Tabopan. Nos primeiros nove meses fê-lo de graça, depois, começou a ganhar cinco tostões por dia. Cinquenta anos de labuta como “talhador“. Não, não é cortador de carne. É de madeira. Gosta de mencionar que utlilizava sempre, no seu ofício, os mesmos instrumentos: “o lápis, o metro, e os moldes”. Estes tinham medidas-padrão: 1,80 m., 1,90 m. Eram os moldes do derradeiro habitáculo terreno, das urnas. Mas em 24 de Maio de 1947 a sua vida, tal como “um vendaval que se alevantou“, mudou decisivamente: foi inaugurado o Cineteatro de Amarante, com capacidade para quatrocentos espectadores. O filme exibido foi Mulheres e Diamantes, com Greta Garbo.
Começou a trabalhar na qualidade de ajudante de projeccionista. A sua tarefa?Abrir e fechar o pano do palco. Momentos solenes.
Neste período, em pleno Estado Novo, os filmes eram de propaganda política e religiosa. O Sr. Alfredo lembra-se do dia em que exibiu Fátima, Terra de fé, de Brum do Canto. O Cineteatro teve lotação esgotada. Os servos paroquiais levaram, em autocarros, os seus fiéis paroquianos das freguesias vizinhas numa romaria em direcção ao Cinema.
Levantava-se às seis da manhã para ir trabalhar e deitava-se, após as sessões de cinema, pela uma ou duas horas. Dormia pouco. Mas o que fazia à noite permitia-lhe lidar com um emprego de tarefas rotineiras, sufocantes e lúgubres. Um filme, um novo dia – era/é a divisa deste homem.
Após o 25 de Abril de 1974, o Cineteatro passou a exibir filmes regularmente com matinée aos domingos.O Sr. Alfredo lembra-se bem da programação. O cardápio cinematográfico era o seguinte: às terças, os filmes de karaté, às quintas de aventura, às sextas, os pornográficos, aos sábados de acção e aos domingos, como antevisão da semana de trabalho, os de drama.
Às sextas-feiras tinha companhia na cabine de projecção. Dois conhecidos polícias, encantados com a programação, pediam-lhe autorização para verem o filme da cabine. Não podiam ser vistos no interior da sala. Sairiam beliscados na sua autoridade. Houve duas sessões do filme Garganta Funda, realizado por Gerard Damiano, com casa cheia! Um facto não despiciendo na terra de Teixeira de Pascoaes.
Em Maio de 1976 desloca-se ao Porto para fazer o exame que lhe permite obter a carteira profissional que exibe com orgulho desmesurado.
Variadíssimas vezes se desloca à estação de caminhos de ferro para ir buscar os filmes. A forma e o material usado para os proteger foi mudando com os tempos: primeiro, chegavam em duas caixas de madeiras com cerca de quinze quilos cada. Transportava-as até ao Cineteatro às costas! Depois, em caixas de folha e, finalmente, em sacos de plástico.
Quando o Cineteatro encerrou, recebeu uma indemnização de trezentos e cinquenta contos. O dinheiro era importante, mas não (a) pagava a vocação. Ficou desolado.
Em 1995 nasce o Cineclube de Amarante e retoma a sua actividade. Aquela que lhe enche a alma e os olhos: o projeccionismo. É o rosto deste Cineclube.
Mede a duração do filme num ápice! Sabe que está dependente do facto de terem 10, 12, 14, 16, 20 partes. Montar e desmontar o filme pode implicar a árdua tarefa de três, quatro horas.
Acolhe todos, no Cinema Teixeira de Pascoaes, com um enorme sorriso. Daqueles que resistem e afrontam as doenças e as intempéries.
É que uma sala de cinema não é apenas um espaço. Tal como a nossa casa não é apenas mais uma casa. Sente-a assim.
São sessenta e seis anos dedicados ao cinema.
Não é o tempo, é o amor imorredouro e incondicional ao cinema que constitui o mais belo argumento e testemunho deste homem. Quando o cinema é o Paraíso.
Elsa Cerqueira
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Nota Marginal: Artigo publicado na Revista Cinema, Federação Portuguesa de Cineclubes, 2011/2012, n.º 43.
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Este artigo serviu de inspiração para o filme intimista que desoculta e imortaliza o Sr. Alfredo Guedes, recolocando-o no lugar que merece, ou seja, enquanto protagonista do filme e da sua/nossa vida. O documentário cujo título é Máquina dos Sonhos, o homem que gosta de cinema foi exibido em ante-estreia no 18.º aniversário do Cineclube de Amarante, no qual o Sr. Alfredo Guedes foi homenageado.
Ficha Técnica:
Título: Máquina dos Sonhos, o homem que gosta de cinema
Realização: João Lourenço (Universidade Católica Portuguesa)
Com: Alfredo Guedes, Aurora Guedes, Elsa Cerqueira, Manuel Carvalho
Produção: Pedro Moreira
Género: Documentário
Portugal, 2012, Cores, 19′
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Alguns meses após esta homenagem, o Sr. Alfredo Guedes sofreu um acidente vascular cerebral encontrando-se em recuperação. As melhoras Senhor dos Sonhos!