Nadir Afonso – O tempo não existe, Jorge Campos
Ficha Técnica:
Título: Nadir Afonso – O tempo não existe
Realização: Jorge Campos
Fotografias: Olívia da Silva
Música: Dimitris Andrikopoulos
Género: Documentário
Coprodução: Fundação Nadir Afonso, ESMAE, Vigília Filmes.
Portugal, 2012, 55’
Harmonias Criativas
O documentário Nadir Afonso – o tempo não existe é a objectivação de chamamentos díspares que se harmonizam.
Por um lado, a obra cinematográfica é a resposta consentida, logo, previamente sentida, por parte do realizador Jorge Campos a uma espécie de chamamento interior que esteve latente cerca de duas décadas. Designá-la, apenas, como o regresso do realizador a Nadir Afonso é reduzir as harmonias criativas que se manifestam, no desenrolar do filme, ante o olhar do espectador-contemplador.
Por outro lado, o processo criativo do artista Nadir Afonso é a resposta visceral ao chamamento inventivo-criativo que a obra reivindica.
E a primeira dificuldade para o realizador consistiu em saber escutar estes apelos, endógenos e exógenos, espelhando-os harmoniosamente no filme.
Jorge Campos percebeu, com mestria, que Nadir Afonso-artista é indissociável de Nadir Afonso-homem, transformando a câmara de filmar na escolta segura do imperativo da autenticidade.
Enquanto Nadir Afonso busca incessantemente a harmonia morfométrica – essência da obra de arte -, Jorge Campos busca a compreensão da essência do homem que preexiste à obra, descobrindo os alicerces da sua teoria estético-cosmológica numa teia na qual confluem as leituras do pai, a convivência com a tia Ricardina e as inquietações com os céus.
Desde criança que a centelha criativa estava entranhada na sua natureza: “Aos quatro anos pinto o meu primeiro ‘quadro’: um círculo vermelho na parede da sala de minha casa, de tal modo perfeito que ninguém se atreveu a repreender-me. ‘Tu pintaste a parede, Riri?’, perguntou minha mãe. ‘Eu seria capaz de fazer uma roda tão bem feitinha?’, respondi. E toda a minha existência se processou sob o signo do ritmo e da precisão geométrica.”[1]
Nos raros momentos dialógicos entre o artista-pintor e o artista-realizador percebe-se que Nadir Afonso não é apenas pintor, é poeta que filosofa ou filósofo que poetisa sobre o homem, a arte e o cosmos.
Segundo Nadir Afonso, “O tempo não existe a priori na natureza. É uma invenção humana gerada a partir dos movimentos dos corpos e do espaço percorrido por eles.”
Convoco Cioran, pensador romeno, para quem o nascimento do homem se dá em simultaneidade com a perda da eternidade. A eternidade, que antecede a temporalidade e a individuação, é o reino do uno primordial: “Depois de ter desbaratado a eternidade verdadeira, o homem cai no tempo, onde não conseguiu, senão prosperar, pelo menos viver: o que é facto é que ele se acomodou. O processo desta queda e deste acomodamento tem o nome de história.”[2]
O realizador intuiu – para utilizar uma palavra nadiriana – que o artista simboliza o reencontro da arte com o cosmos e, por isso, acompanhou-o no deambular por entre as nuvens, a lua, os montes de trás e da frente, o rebanho e o feno.
Vislumbra-se, portanto, uma harmonia entre a perspectiva cósmica de Nadir Afonso, a partir da qual as obras surgem como reinvenções, e as paisagens naturais filmadas por Jorge Campos.
E se a obra de arte é universal e imperecível, o artista que a cria também se erige numa pequena imortalidade que comunga da imutabilidade primordial.
O filme de Jorge Campos é o derradeiro chamamento, o do olhar do espectador ante a ancestralidade das harmonias criativas onde o tempo nunca terá existido…
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[1] Nadir Afonso, Visão, 2007
[2] Cioran, La Chute dans le temps (1964),Paris, Gallimard,1995, p. 1156
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Elsa Cerqueira